'O diário de Anne Frank' quase não foi publicado e reconhecimento só veio após peça na Broadway; entenda
2025-05-06
HaiPress
Mural Anne Frank em Amsterdã,Holanda — Foto: Divulgação
RESUMO
Sem tempo? Ferramenta de IA resume para vocêGERADO EM: 06/05/2025 - 03:31
"O Diário de Anne Frank: Da Rejeição Inicial ao Ícone Global"
"O diário de Anne Frank" quase não viu a luz do dia e só ganhou reconhecimento após uma peça na Broadway. O best-seller,traduzido para mais de 70 idiomas,enfrentou rejeições iniciais até se tornar um ícone global. Otto Frank,pai de Anne,foi crucial para a publicação do diário,que hoje é um símbolo de resistência. A obra continua a inspirar e gerar debates sobre sua relevância e intepretações culturais diversas.O Irineu é a iniciativa do GLOBO para oferecer aplicações de inteligência artificial aos leitores. Toda a produção de conteúdo com o uso do Irineu é supervisionada por jornalistas.
CLIQUE E LEIA AQUI O RESUMO
O mundo conhece “O diário de Anne Frank”,mas poucos sabem da extraordinária trajetória do texto até se tornar um fenômeno mundial. Escrito por uma adolescente judia perseguida e morta pelo nazismo,o relato íntimo sobreviveu à sua autora e é visto como um símbolo de resistência e inocência diante do horror.
São Paulo: Circuito Poesia no Centro une livrarias e centros culturais; confira a programaçãoCrítica: Tentativa de aproximar Tati Bernardi de Annie Ernaux esconde méritos e defeitos de 'A boba da corte'
Em “Quero continuar vivendo depois da morte”,recém-lançado no Brasil,o editor e pesquisador alemão Thomas Sparr reconstitui os bastidores dessa odisseia editorial,que continua gerando debate 80 anos após a libertação de Auschwitz. Traduzido para mais de 70 idiomas e com mais de 35 milhões de exemplares vendidos,o best-seller passou perto de nunca ter existido. Seu manuscrito superou o desprezo de editores e especialistas,além da indecisão inicial do próprio pai da autora em torná-lo público. Já publicado,demorou para ganhar reconhecimento.
— A história até agora não contada do diário de Anne Frank nos permite descobrir como editoras,jornalistas e leitores foram inicialmente relutantes em relação à obra — diz Sparr em entrevista ao GLOBO por e-mail. — É quase um milagre que esse livro tenha se tornado um dos mais conhecidos,vendidos e adaptados do mundo.
Um diário,muitas versões
Anne Frank começou a escrever seu diário em junho de 1942,enquanto se escondia com sua família da perseguição nazista na Holanda ocupada. A escrita foi interrompida em 1944,quando ela foi presa e deportada. A jovem morreria em março de 1945,aos 15 anos,no campo de concentração de Bergen-Belsen,na Alemanha.
Naquele mesmo ano,já com a guerra na Europa encerrada,os manuscritos chegaram às mãos de seu pai,Otto,único da família a sobreviver ao Holocausto. Ele só teve coragem de abrir o diário semanas mais tarde; e,mesmo dividido,decidiu tornar o texto público.
Míriam Leitão na ABL: os livros para conhecer a obra da nova imortal
Anne escreveu duas versões do diário,uma preliminar e outra parcialmente corrigida — conhecidas hoje como A e B. Otto criou uma terceira versão (C),em que corta passagens que considerava comprometedoras. Trechos em que Anne fala sobre sua sexualidade ou critica sua mãe,por exemplo,ficaram de fora — mas voltaram em outras versões integrais do diário. Como Sparr explica,porém,é impossível falar em versão “original” ou “completa”,pois Anne não chegou a terminar a sua transcrição,deixando diversas páginas avulsas em outros cadernos.
No Brasil,a editora Record,publica a “edição oficial”,com 352 páginas,que mistura os escritos A e B com organização de Otto,e a “obra reunida” de Anne,de 976 páginas,organizada por Miram Pressler,com trechos anteriormente omitidos.
‘herói discreto’
O livro relembra os esforços de Otto para transformar o diário de sua filha em um importante testemunho histórico. No início,enfrentou resistência. Uma editora alemã chegou a dizer a Otto que o texto não tinha “valor literário”. Outros especialistas trataram o manuscrito como uma falsificação.
— Otto Frank é o herói discreto da história do livro de Anne. Mas só ela é a autora. Todos os cortes da primeira edição foram corrigidos. Hoje sabemos exatamente como Anne Frank escreveu seu diário de 1942 a 1944. Otto preservou o legado; escreveu centenas de milhares de cartas para divulgá-lo e torná-lo conhecido.
O diário só começou a atrair os editores em 1946,após um artigo do historiador holandês Jan Romein. Segundo ele,o ainda desconhecido diário sintetizava toda a crueldade do fascismo — “mais do que todas as provas que o processo de Nuremberg reuniu”.
Thomas Sparr vê risco de banalização da obra de Anne Frank — Foto: Divulgação/juergen-bauer.com
A obra seria publicada em livro um ano depois,com uma tiragem de três mil exemplares. O ponto de inflexão veio do outro lado do Atlântico,com uma peça da Broadway inspirada nos relatos de Anne Frank. Encenada em outubro de 1955,teve os ingressos esgotados noite após noite.
— Não conheço outro livro cujo sucesso tenha decorrido de uma adaptação teatral dessa maneira — diz Sparr. — No embalo da peça,os editores conseguiram produzir edições de bolso com mais rapidez,e milhões de exemplares foram vendidos,nos Estados Unidos,na Europa,no Brasil.
O texto continuou sendo adaptado para os palcos,como em 2024,quando a atriz brasileira Poliana Carvalho protagonizou “Anne Frank — A voz que se tem na memória”,no Rio de Janeiro.
Ícone pop
Em 1959,a adaptação cinematográfica do diário feita por George Stevens foi premiada com três Oscars.
Hoje,citações do diário circulam na internet,muitas vezes de forma fragmentada e fora de contexto. Sparr teme que a fonte original desse interesse se banalize.
— Acho que é um desenvolvimento bastante positivo o fato de Anne Frank ter sido tão amplamente acolhida em todo o mundo — diz o autor. — Sempre há o perigo da banalização e do kitsch,mas precisamos resistir a essas tendências. É muito importante que a Fundação Anne Frank detenha o copyright da obra por um período longo. Precisamos aprender que integridade significa,antes de tudo,uma obra integral.
Recepção global
O livro do editor e pesquisador alemão Thomas Sparr mostra como “O diário de Anne Frank” ganhou significados distintos e inesperados em outras culturas,que vão além da tragédia do Holocausto. No Japão,o texto virou uma espécie de manual para as descobertas da adolescência. Jovens japonesas descreviam sua primeira menstruação como “o dia Anne Frank”,e uma empresa chegou a comercializar um absorvente chamado “Anne”.
O diário também tocou de forma profunda os sul-africanos perseguidos pelo regime racista do apartheid. Em determinada época,um único exemplar circulava entre os detentos políticos,que copiavam as suas páginas para poder carregá-lo sempre consigo. Um desses leitores,o revolucionário Nelson Mandela (1918-2013),que ficou preso entre 1962 e 1990,inaugurou uma exposição sobre Anne Frank em Joanesburgo em 1994,quando já havia se tornado presidente do país. Em 2021,o cineasta Ari Folman lançou nos cinemas uma animação que associa Anne Frank com o drama atual dos refugiados no mundo.
Obra queer?
Sparr compila abordagens e interpretações pouco conhecidas da obra. Em 2019,uma pesquisadora holandesa destacou passagens do diário que sugerem uma possível inclinação homoafetiva de Anne. Em um dos trechos,a adolescente confessa sua curiosidade em relação ao corpo de Jacqueline van Maarsen,sua melhor amiga e colega de escola,por quem sentia um ciúme intenso — a ponto de se irritar ao vê-la conversar com outras meninas.
Anne conta ter perguntado a Jacqueline se,como “prova de amizade”,poderiam tocar uma nos seios da outra. Em outro momento,descreve com entusiasmo o impacto que imagens de mulheres nuas causavam nela. “Se ao menos eu tivesse uma amiga!”,desabafa.
Para Sparr,o “Diário de Anne Frank” dá uma contribuição ao entendimento atual de queerness.
“A franqueza de Anne Frank em relação ao seu corpo e sua curiosidade em relação à sexualidade foram mencionadas muitas vezes”,observa o autor em seu livro. “Elas não são incomuns para uma menina na idade dela. Incomum é,entretanto,a forma como ela consegue representá-las”.
Censura recente
Na Alemanha,um jardim de infância chamado “Anne Frank” tentou mudar de nome. Mas os pais foram facilmente convencidos de que era o nome certo para um lugar onde crianças crescem.
Do lado de cá do Atlântico,em alguns estados dos Estados Unidos,como o Texas,bibliotecas e escolas ainda tentam colocar o diário na lista de livros proibidos,pela forma aberta com que Anne descreve seus primeiros desejos sexuais.
— Tudo isso fará com que o livro seja lido ainda mais — diz Sparr. — Quanto mais tentam calar Anne,mais ela fala. Tenho certeza de que o livro de Anne será lido enquanto a Humanidade souber ler e ver que os livros podem viver pela eternidade.
Cronologia de 'O diário de Anne Frank'
12 de junho de 1942. Anne Frank ganha um diário de presente em seu aniversário de 13 anos1942–1944. Escondida dos nazistas em anexo de seu apartamento,Anne escreve intensamente4 de agosto de 1944. A Gestapo invade o esconderijo e prende os FrankFevereiro ou março de 1945. Anne morre no campo de concentração de Bergen-Belsen25 de junho de 1947. Otto Frank,pai de Anne e único sobrevivente da família,publica o diário pela primeira vez,em holandês1950–1952. O diário é traduzido para alemão,francês e inglês. Em 1952,é publicado nos EUA1955. A adaptação teatral estreia na Broadway e ganha prêmios1959. A peça vira filme,que vence três Oscars1960. A casa onde Anne se escondeu em Amsterdã é convertida em museu1986. Sai “edição crítica”,com manuscritos originais e comentários1995. É publicada a edição definitiva,com trechos inéditos removidos por Otto Frank2009. O diário de Anne Frank é inscrito no Registro da Memória do Mundo da Unesco 2021–2024. Tentativas de censura e proibição do diário em escolas e bibliotecas pelo mundo
‘Quero continuar vivendo depois da morte’. Autor: Thomas Sparr. Tradução: Rafael H. Silveira. Editora: Record. Páginas: 288. Preço: R$ 69,90.